Uma reflexão sobre a Páscoa: passagem para pessoas e organizações

Novamente celebramos a Páscoa.  Certamente trata-se de uma das festas mais antigas da humanidade e para duas grandes tradições religiosas – judaísmo e cristianismo – é a festa mais importante.
Para os judeus que a celebram há cerca de 3500 anos é a festa que celebra a libertação da situação de escravidão do povo hebreu no Egito para a vida em uma terra de abundância. Quando, segundo a tradição judaica, o anjo do Senhor feriu os primogênitos do Egito e todo o povo hebreu liderado por Moisés atravessou a pé enxuto o Mar Vermelho e fez, então, a grande passagem para uma nova condição de vida.

A Pessach ( do hebraico, passagem) é celebrada com diversos símbolos - como ervas amargas e  pães sem fermento - para lembrar o sofrimento do povo, a escravidão  e a consciência da presença libertadora de um Deus que assim se revela para o seu povo.
O cristianismo – religião nascida a partir do judaísmo e dos ensinamentos do judeu Jesus de Nazaré, o Cristo (que significa o Messias) – celebra a Páscoa há quase dois mil anos como a passagem da morte para vida, o dramático processo da paixão (sofrimento), morte e vitoriosa ressurreição do Senhor.
Esse evento - ocorrido por ocasião da Páscoa dos judeus, também celebrada por Jesus – tornou-se para todos os cristãos a razão de ser da fé e vida cristã, pois segundo o apóstolo Paulo, se Cristo não ressuscitou é vã a nossa fé.

Em ambas as situações históricas e as celebrações que delas fazem memória, podemos falar de um rito de passagem de uma situação de escravidão, sofrimento e morte para uma nova situação de vida, de plenitude, de abundância e felicidade, conquistadas, é verdade com sacrifícios, seja a longa e dolorosa travessia do deserto, seja o cruento sacrifício da cruz. Mas em todos os casos o necessário sacrifício - o ofício de tornar sagrado – perpetuado pelas tradições espirituais possibilita a renovação da fé na vida, da fé no Transcendente que incessantemente convida, promove e estabelece condições para que todos os seres humanos vivam a vida em plenitude.

A nossa cultura ocidental é marcada por essas tradições.  Participantes ou não dessas religiões, toda a nossa vida está impregnada de algum modo por esses valores, ritos e símbolos. Consciente ou inconscientemente fomos influenciados, educados e assimilamos, adotamos, vivemos os valores dessas tradições espirituais.  Pode-se até rejeitar, mas não se pode negar a força dos valores presentes na sabedoria judaica e cristã para a construção de uma sociedade que seja melhor para todos: a ética do bem comum, a justiça, a solidariedade, a tolerância e o respeito ao outro, o perdão, a fraternidade, o diálogo, o amor ao próximo, a dignidade humana e de todas as criaturas, etc.
Frente a uma cultura que cada vez mais tem estimulado o individualismo, o consumismo e a competição de forma muitas vezes perversa e destrutiva da dignidade humana e do planeta, precisamos evocar com urgência e veemência os valores que são eternos, universais e que possibilitam para todos as condições para a felicidade e a vida digna.
As organizações – públicas, privadas e não governamentais – precisam ser sustentadas por esses valores caso queiram também ter vida longa. E parto do pressuposto que todas as organizações buscam a perenidade nos seus negócios assim como precisam ser reconhecidas pelo bem que proporcionam pelo menos aos seus clientes, do contrário sequer sobreviveriam.
Isso me faz pensar que uma “páscoa” nas organizações se faz necessário! Explico-me. Há muitos sinais de escravidão, sofrimento e morte no mundo corporativo – alguns escandalosos e outros mais sutis, porém não menos letais - entre os quais:
•    Corrupção, subornos, desvios de verbas públicas para interesses privados, exploração de empregados, assédios moral e sexual, exploração predatória dos recursos naturais atentando contra a vida, a natureza e a sociedade, a extrema ganância do lucro pelo lucro, etc
•    Modelos de gestão ainda baseados no extremo comando e controle como se as pessoas fossem peças de engrenagem, não confiáveis e descartáveis, gerência centralizadora que impede o desenvolvimento das competências, da criatividade, cultura do medo, além da inveja, do estímulo à competição interna – considerada ainda por muitos como saudável – e tantos outros problemas que levam o ser humano ao desânimo (“des – anima”, isto é, sem alma... sem vida), à desmotivação e logo à baixa produtividade, baixo nível de comprometimento, relacionamento ruim com os clientes internos e externos, etc
A lista pode ser maior. Revela a ausência dos valores ou a incoerência absoluta e absurda entre os valores anunciados nos websites e quadros das empresas e a prática cotidiana. Portanto, nada diferente da “escravidão no Egito” e das condições que levaram Jesus de Nazaré à morte.

Se a Páscoa judaica e cristã significa a passagem para uma situação de vida e liberdade, é a mesma páscoa que precisa acontecer na vida organizacional. É preciso e esse é o anseio de todos os seres humanos:
•    Que o trabalho seja digno, valorizado e que os trabalhadores e trabalhadoras de todas as áreas sejam respeitados em sua dignidade;
•    Que os ambientes de trabalho sejam saudáveis e um verdadeiro espaço de aprendizagem e realização humana, espaço de convivência, de companheirismo, amizade e onde cada um e cada uma percebam o significado de sua obra e de sua contribuição para o bem comum;
•    Que a ética prevaleça em todas as relações a começar pelos colaboradores e que oriente as negociações com fornecedores e clientes, que sustente o relacionamento com o governo, a sociedade e a preservação dos recursos naturais;
•    Que o lucro seja a justa remuneração do investimento e do trabalho de todos, mas como conseqüência do trabalho honesto e digno a serviço da sociedade e, portanto, deve ser compartilhado com todos que ajudaram a produzi-lo;
•    Que os líderes sejam de fato humanos, servidores e conscientes de sua responsabilidade no desenvolvimento de todos e de outros líderes, conscientes de que devem atuar como os guias na “grande travessia”, de que são agentes de transformação a promover melhores resultados, que só podem ser obtidos através de relacionamentos saudáveis e com pessoas valorizadas e reconhecidas em seus valores, méritos e talentos;
•    Enfim, uma lista também imensa, mas que pode ser sintetizada no anseio de que todas as organizações sejam efetivamente espaços de realização humana, de contribuição para o bem comum, ou seja, de todos os interessados e não apenas de alguns poucos. A lucratividade, imagem  e perenidade da empresa serão conseqüências do modo de ser e proceder dos seus gestores e colaboradores.
No entanto, para que isso aconteça é necessário um sacrifício pascal, um rito de passagem, isto é, um esforço e investimento no processo da transformação. Porque, como afirma Richard Barrett, organizações não se transformam, pessoas sim. E o processo de transformação humana – a metanóia – passa pela travessia do deserto com todos os seus percalços e dificuldades para valorizar a importância da convivência e do relacionamento humano, passa pela cruz de conhecer a si mesmo para se libertar das trevas nas quais cada pessoa se aprisiona: trevas da ignorância e da autossuficiência, do medo das próprias fragilidades, vergonhas e tantos outros medos tantas vezes escondidos e camuflados com atitudes autoritárias, opressoras e centralizadoras... Precisa-se comer as ervas amargas da descoberta que ninguém é dono da verdade, para poder saborear da inteligência coletiva e experimentar os pães ázimos da própria fragilidade para valorizar o poder da espiritualidade e inteligência emocional, dos valores que constituem o caráter para se tornar gente de verdade e se por a serviço dos outros.
Então é preciso se transformar para transformar as organizações. E estas serão tanto mais sustentáveis e saudáveis à medida que os seus colaboradores e principalmente as suas lideranças souberem dirigir a sua conduta – em todas os seus relacionamentos -  com base naqueles valores que os grandes sábios da humanidade propuseram como caminho para a vida plena e felicidade.  Assim as vitórias de cada um e de todos poderão ser celebradas na partilha do pão e no vinho da alegria...

É, sem dúvida, também uma páscoa de fé. Até porque nenhum ser humano vive sem fé. Vive-se da fé todos os dias: fé que a informação recebida é verídica, fé que os produtos consumidos são saudáveis, fé que o trabalho será bem sucedido, fé no fornecedor, fé no cliente, enfim fé na vida. E, sobretudo, fé no Transcendente e nos valores espirituais que são alimento e luz que ilumina, alimenta e fortalece a caminhada humana.  Se também não acreditarmos que esse mundo novo é possível, será em vão todo o nosso trabalho. E se não empenharmos toda a nossa energia para concretizá-lo de que vale o nosso saber e nossas ditas competências?
Creio que já caminhamos nessa direção e as razões da minha fé e esperança são os agentes de transformação, pessoas que se esforçam para serem pessoas pascais, luminosas: iluminadas e iluminadoras e as organizações que – lideradas por essas pessoas – se tornam também luminosas.
Já saímos, de certo modo, em direção à Terra Prometida. Já sabemos como agir, como transformar, como concretizar o sonho. Já temos os instrumentos e os saberes necessários. A páscoa já começou! Feliz Páscoa para todos!

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